segunda-feira, agosto 23, 2010

A Essência é Imutável

   Desde muito pequena, vejo em grandes meios de comunicação, principalmente em documentários das potências televisivas, o Vale do Jequitinhonha ser chamado de "Vale da Pobreza".
Destaque: Vale do Jequitinhonha/MG.
   O Vale do Jequitinhonha é uma das doze mesorregiões de Minas Gerais e é formado por 51 municípios, como Almenara, Araçuaí, Capelinha, Carbonita, Diamantina, Jequitinhonha, Minas Novas, Palmópolis, Pedra Azul, Santa Maria do Suaçuí, dentre outros. Está situado no norte do estado. A região, que inicialmente pertenceu à Bahia (até o final do século XVIII), foi incorporada ao estado de Minas Gerais, após a descoberta de diamantes no tijuco (região de Diamantina). É, de fato, uma região amplamente conhecida devido aos seus baixos indicadores sociais e também ao norte é conhecida por ter caracteristicas do sertão nordestino.
   Não faz muito tempo, eu via uma reportagem sobre o trabalho escravo e insalúbre. O repórter então, disse haver uma cidade, abandonada pelo tempo, e que chamou de "cidade das viúvas de maridos vivos", já que os homens da lá viviam em outros estados, no corte de cana. E eis que a tal cidade era no Vale do Jequitinhonha.
   Em uma introdução áspera, com expressões fortes, ele descrevia o Vale como um dos lugares mais pobres do mundo, com um povo castigado pela seca e pela fome. E mostrava aquele lugar, dando ênfase as ruas de terra vermelha, casas de barro e lampião a gás, onde a civilização não chegou.
   O que quer que seja maior, a rachadura dos pés de quem trabalha, ou do solo seco desse Vale, pouco me importa. O que de fato prevalece, são as histórias que surgem do atrito do contato entre os dois.
   Talvez, se aquele repórter parasse, por alguns instantes, de narrar os desafetos daquele lugar, ele teria ouvido o canto singelo das lavadeiras na beira do rio. Se parasse de repudiar o barro simples das paredes,
veria os pés ágeis e livres dos meninos que corriam atrás da bola de meia, que lhes dava a alegria mais sincera ao cruzar a linha do gol, marcada por um par surrado de chinelos de borracha.
   Ele dizia que aquele era o Vale que as pessoas das grandes cidades não imaginavam existir. E eu, dizia, comigo mesma, que ele nem imaginava o que existe nesse Vale, detentor de exuberante beleza natural e cultural, com traços sobreviventes da cultura indígena e da cultura negra. Aqui, existem Marias, Josés, Antônios, Joanas, mulheres, moleques, homens, meninos... Existe gente, força, e arte!
   O Vale do qual eu desejo falar, mora do outro lado da moeda. Se veste de cores, carrega tambores, e canta louvores ao Deus que o criou.

   A música nunca entrou na minha vida. Ela já estava lá quando eu nasci... Nas cordas do bandolim de meu avô Ulisses, nas cordas vocais de minha tia Eloisa... É muito nítido pra mim a imagem da casa dos meus avós, com toda a minha família reunida, cada um com seu instrumento, e eu, ainda sem entender o que acontecia, correndo por entre pedestais e caixas de som com meus primos.
   O tempo passou, e fui descobrindo aquela musicalidade incansável, que, de repente, tomava proporções gigantescas dentro do meu peito.
   Volto a dizer que é muito forte a imagem do meu avô, quando falo da minha música interior. Quando me descobri musicalmente, eu morava na casa dele. E decidi aprender a tocar violão. Fazia aulas lá mesmo, com meu primeiro professor, Fábio. Meu avô, hora ou outra, interrompia a aula para dar palpites. Meu professor, então, teve que se mudar para outra cidade após um mês de aulas. Eu havia aprendido a fazer dois acordes e, nessa época, com 12 anos, fiz minha primeira música: Filho da Zabumba.
   Quando comecei a fazer aulas com o novo professor, eu entrei num universo mágico! Dessa vez, eu fazia aulas na casa de Tadeu Oliveira, que não só me ensinava novos acordes, mas me apresentou a Cultura do Vale do Jequitinhonha! Me mostrava CD's, me fez descobrir Paulinho Pedra Azul, esculturas de madeira de artistas do Vale. Me fez descobrir a vida nascida do barro de Lira, e a minha voz...
Coral Canta Minas, regido por Tadeu Oliveira

   Através do Tadeu, subi no palco pela primeira vez. Éramos em 15 pessoas. E na Casa da Cultura de Capelinha, em 2004, eu estava lá, entoando versos encantados da arte do povo do Vale! Por essa pessoa, mora em meu peito uma gratidão eterna. Tenho carinhosamente como meu "Pai Cultural", que desviou o meu olhar da imagem desgastada do Vale da pobreza, e me inseriu no Vale da grandeza cultural infinita.  
   Como eu gostaria que as pessoas descobrissem o Vale do Jequitinhonha como de fato ele é... Que vissem aquela imagem do barro trincado se tranformar nas imagens das bonecas e namoradeiras... Que vissem o sacrifício das mulheres de grandes trouxas na cabeça, se tranformar no ofício bonito do canto das lavadeiras... Que vissem os calos das mãos do trabalhador rural se tornarem causos, pra contar aos moleques, na beira da fogueira, na noitinha fria, calma, cheia de estrelas... E que conhecessem a voz de Verono, que tão bem cantou o amor ao Vale Jequi. Que conhecessem a voz de Pedro, que vai levando seu canto por novas fronteiras...
Artesanato Minas Novas

   Sempre me orgulhei de ser uma artista do Vale do Jequitinhonha. Para mim, não há no mundo, realeza ou título maior que esse! E minha dívida pessoal com o Vale, foi nunca ter feito uma canção pra honrar minha origem. Mas valeu todo o tempo que esperei, pois o resultado, não foi somente cantar o vale, mas minha própria essência.
   A essência é a parte imutável do ser. Ainda que eu viva em outros lugares, minha essência é do Vale. Ainda que o Vale sofra, sua essência é a pura arte.
   Espero que meu filho tenha a oportunidade de viver também os bons festivais, folias de Reis, e que um dia, veja a mulher que carrega na cabeça aquela pedra grande, em sacrifício, pedindo a chuva, pois nada, nem a chuva, nem a mulher, nem a pedra, nem a essência... Nada. Nada disso, me fugiu a memória.
  
Vale Encantado do Jequitinhonha... Onde é só gritar: Valei-me, Jequi!
E o "JequitiVale"...
Música e Paz!

Fotos:
"Mapa Minas", Wikipédia;
"Paisagem", por Alisson Zêra;
"Apresentação Canto Coral", Divulgação;

"Bonecas de Barro", por Maria Letícia.

3 comentários:

  1. Simplesmente vc descreveu o vale do jequi que eu vivo e tanto amo, valeu Letícia!

    SANTIAGO(minas novas)

    ResponderExcluir
  2. Querida Letícia,

    Fico feliz e lisonjeado em saber que, ainda que numa breve convivência, pude contribuir para despertar em você o olhar de alteridade para a cultura popular, principalmente para timbres e texturas que acendeu em você o sentimento de pertencer a uma essência que, ao aproxima-lhe de suas raízes, possibilitou a aquela menina de então ousar na música com um estilo próprio e inconfundível.
    Desejo-lhe muito sucesso, de todo coração!

    Abraços Gerais!!!
    Inté, uai!!!

    ResponderExcluir
  3. Maria Letícia é crença, rosário de acordes e versos, pedra lapidada, canto, canção, voz de mulher enfeitando música. Maria Letícia é música. E na primeira vez que a vi cantando bateu aquela coisa que diz : aí está um talento que deve ser valorizado. Fico feliz em ser amigo dessa mulher, mãe, poetisa, musa, cantora.
    Sua história com a música irá longe, chegando bem perto do coração do povo.

    ResponderExcluir

Deixe-nos sua mensagem, seguida de seu e-mail.
(E-mail é opcional)